26 de jun. de 2014

Marguerite Duras | Maurice Blanchot



M.D a doença da morte 
Por Maurice Blanchot







Introduzo aqui, de uma maneira que pode parecer arbitrária, páginas escritas sem outro pensamento que o de acompanhar a leitura de um relato quase recente (mas a data não importa) de Marguerite Duras. Sem a ideia clara, em todo caso, de que esse relato (em si mesmo suficiente, o que quer dizer perfeito, o que quer dizer sem saída) me reconduziria ao pensamento, prosseguido por outro lado, que interroga o nosso mundo – o mundo que é nosso por não ser de ninguém – a partir do esquecimento, não das comunidades que nele subsistem (elas, antes, se multiplicam), mas da exigência «comunitária» que as assombra talvez, mas se renuncia a elas quase seguramente.


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Qualquer que seja a importância do amor platônico, filho do vazio ávido e do recurso retorcido, sente-se bem que a concepção de Fedro não é refutada. O amor, mais forte que a morte. O amor que não suprime a morte, mas passa o limite que esta representa e, assim, torna-a sem poder em relação à assistência a outrem (esse movimento infinito que leva em direção a ele e, nessa tensão, não deixa o tempo de voltar ao cuidado de «mim»). Não para glorificar a morte ao glorificar o amor, mas talvez, ao contrário, para dar à vida uma transcendência sem glória que a põe, sem termo, a serviço do outro.

Não digo que, por aí, ética e paixão se reencontrem confundidas. À paixão resta em propriedade e em conta que seu movimento, pouco resistível, não desarranja a espontaneidade, nem o conatus, mas é, ao contrário, a oferta superior deles, que pode ir até a destruição. Não cabe, pelo menos, acrescentar que amar é certamente ter em vista só o outro, não como tal, mas como o único que eclipsa os outros e os anula? Daí por que a desmesura seja sua única medida, e a violência e a morte noturna não possam ser excluídas da exigência de amar. Assim como o relembra Marguerite Duras: A vontade de estar à beira de matar um amante, de guardá-lo para vós, para vós só, de tomá-lo, de roubá-lo contra todas as leis, contra todos os impérios da moral, vós não a conheceis...?. Não, ele não a conhece. De onde o implacável e o desdenhoso veredicto: É curioso um morto.

Ele não responde. Vou me guardar de responder em seu lugar, senão, voltando ainda aos gregos, eu murmura ria: Mas eu sei quem sois vós. Não a Afrodite celeste ou uraniana que só se satisfaz com o amor das almas (ou dos rapazes), nem a Afrodite terrestre ou popular que quer ainda os corpos e até mesmo as mulheres, a fim de que, por elas, o amor seja engendrado; nem somente uma, nem somente a outra; mas vós sois ainda a terceira, a menos nomeada, a mais temida e, por causa disso, a mais amada, aquela que se esconde por trás das outras duas das quais ela não é separável: a Afrodite ctônica ou subterrânea que pertence à morte17 e a ela conduz aqueles que ela escolhe ou que se deixam escolher, unindo, como se vê aqui, o mar do qual ela nasce (e não cessa de nascer), a noite que designa o perpétuo sono e a injunção silenciosa dirigida à «comunidade dos amantes», a fim de que estes, respondendo à exigência impossível, se exponham um para o outro à dispersão da morte. Uma morte, por definição, sem glória, sem consolação, sem recurso, à qual nenhum outro desaparecimento saberia se igualar, à exceção talvez daquele que se inscreve na escritura, quando a obra que é a sua deriva é, de antemão, renúncia a fazer obra, indicando somente o es paço onde ressoa, para todos e para cada um, e, portanto, para ninguém, a palavra sempre por vir do desobramento.


Pelo veneno da imortalidade
Se acaba a paixão das mulheres
(Marina Tsvetaieva, Eurídice a Orfeu)



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A comunidade dos amantes – quer estes a queiram ou não, quer gozem dela ou não, quer estejam ligados pelo acaso, «o amor louco», a paixão da morte (Kleist) – tem por fim essencial a destruição da sociedade. Lá onde se forma uma comunidade episódica entre dois seres que são feitos ou que não são feitos um para o outro, se constitui uma máquina de guerra ou, para melhor dizer, uma  possibilidade de desastre que porta em si, mesmo que seja em dose infinitesimal, a ameaça da aniquilação universal. É nesse nível que é preciso considerar o «roteiro» que se impôs a Marguerite Duras e que necessariamente a implica a ela mesma desde o momento em que ela o imaginou. Os dois seres que nos são mostrados representam, sem alegria, sem felicidade, e tão separados quanto pareçam, a esperança de singularidade que eles não podem compartilhar com nenhum outro, não somente porque eles estão encerrados, mas porque, em sua indiferença comum, estão encerrados com a morte que uma revela ao outro como aquilo que ele encarna e como o golpe que ela gostaria de receber dele, sinal da paixão que ela espera em vão. De uma certa maneira, pondo em cena um homem que está separado para sempre do feminino, mesmo quando ele se une a uma mulher casual a que ele proporciona um gozo que ele não compartilha, Marguerite Duras pressentiu que era preciso ultrapassar o círculo imantado que figura, com complacência demais, a união romântica dos amantes, ou seja, que estes fossem cegamente levados pela necessidade de se perder mais do que pela preocupação em se encontrar. E, no entanto, ela reproduz uma das eventualidades que o imaginário de Sade (e sua vida mesma) nos ofereceu como o exemplo banal do jogo das paixões. A apatia, a impassibilidade, o não-lugar dos sentimentos e a impotência sob todas as suas formas, não somente não impedem as relações dos seres, mas conduzem essas relações ao crime, que é a forma última e (se podemos dizer) incandescente da insensibilidade. Mas, justa mente, no relato que nós viramos e reviramos como que para extorquir-lhe o segredo, a morte é chamada e, ao mesmo tempo, desvalorizada, a impotência sendo tal que ela não vai até lá,quer ela pareça mesurada demais ou, ao contrário, quer ela atinja a uma desmesura que Sade mesmo ignora.







Eis o quarto, o espaço enclausurado aberto à natureza, fechado aos outros homens, onde, durante um tempo indefinido calculado em noites – mas cada noite não saberia tomar fim – dois seres tentam se unir apenas para viver (e, de uma certa maneira, celebrar) o fracasso que é a verdade daquilo que seria sua união perfeita, a mentira dessa união que sempre se cumpre não se cumprindo. Eles formam, apesar disso, alguma coisa como uma comunidade? É, antes, por causa disso que eles formam uma comunidade. Eles estão um ao lado do outro, e essa contiguidade que passa por todas as espécies de uma intimidade vazia os preserva de encenar a comédia de um entendimento «fusional ou comunial». Comunidade de uma prisão, organizada por um, consentida pela outra, onde aquilo que está em jogo, é justamente a tentativa de amar, mas para Nada, tentativa que não tem enfim outro objeto além desse nada que os anima, sem que eles saibam, e que não os expõe a nada além do que a se tocar em vão. Nem alegria, nem ódio, um gozo solitário, lágrimas solitárias, a pressão de um Superego implacável, e finalmente uma só soberania, aquela da morte que rodeia, que se deixa evocar e não partilhar, a morte da qual não se morre, a morte sem poder, sem efeito, sem obra que, na derrisão que ela oferece, guarda a atração da «vida inexprimível, a única no final das contas à qual tu aceitas te unir» (René Char). Como não buscar nesse espaço onde, durante um tempo que vai do crepúsculo à aurora, dois seres não têm outra razão de existir além de se expor inteiramente um ao outro, inteiramente, integralmente, absolutamente, a fim de que compareça, não a seus olhos mas a nossos olhos, sua comum solidão, sim, como não buscar nesse espaço e como não reencontrar nele «a comunidade negativa, a comunidade dos que não têm comunidade»?


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De uma certa maneira, não deve escapar que eu não falo de modo mais exato, como seria necessário, do texto de Marguerite Duras. Se me esforço a menos traí-lo, reencontro a estranheza da jovem mulher que está sempre lá, e como que eternamente, em sua fragilidade, pronta para acolher tudo aquilo que poderia lhe ser pedido. Mas, tão logo isso é escrito, me dou conta de que é preciso nuançar: ela é recusa também: por exemplo, ela se recusa a chamá-lo por seu nome, quer dizer, a fazê-lo existir nominalmente; do mesmo modo que ela não lhe aceita as lágrimas das quais ela só dá uma interpretação restritiva: ela as ignora, protegida que ela é dele, obstruindo o mundo por inteiro sem lhe deixar o menor lugar; do mesmo modo, enfim, que ela se recusa a ouvir a história da criança, de sua infância pela qual, sem dúvida, ele gostaria de justificar, tendo amado demais a sua mãe, não poder amar esta de novo incestuosamente nela – história única para ele, banal para ela (ela ouviu e leu também muitas vezes essa história, por toda parte, em muitos livros). O que significa que ela não saberia se limitar a ser mãe, um substituto da mãe, ultrapassando toda especificidade que a caracterizaria como fulana ou sicrana, por aí, o absolutamente feminino, e, no entanto, esta mulher, viva ao ponto de estar perto da morte se ele fosse capaz de dar a ela a morte. Ela acolhe, portanto, tudo dele, sem cessar de encerrá-lo em sua clausura de homem que não tem relações senão com outros homens, o que ela tende a designar como a «doença» dele ou como uma das formas dessa doença, por ela mesma infinitamente mais vasta.








Sua doença? A doença da morte? Ela é misteriosa; ela é repulsiva, é atraente. É porque a jovem mulher pressentiu que ele era atingido por ela ou que ele era atingido por uma singularidade ainda difícil de nomear, que ela aceitou o contrato, quer dizer, encerrar-se com ele. Ela acrescenta que soube, desde quando ele falou, mas que ela soube sem saber, sem poder ainda nomear: Durante os primeiros dias eu não soube nomear essa doença. E, depois em seguida, pude fazê-lo. Mas as respostas que ela dá ao assunto de uma tal doença mortal, por mais precisas que sejam, e que levam novamente a dizer: ele morre por não ter vivido, morre sem que sua morte seja morte para qualquer vida (ele não morre, portanto, ou sua morte o priva de uma falta da qual ele não terá jamais conhecimento), tais respostas não têm um valor definitivo. Ainda mais porque é ele, o homem sem vida, que organizou a tentativa de ir buscar a vida no conhecimento disso (o corpo feminino: lá está a existência mesma), no conhecimento daquilo que encarna a vida, dessa coincidência entre essa pele e a vida que ela recobre, e na abordagem arriscada de um corpo capaz de pôr no mundo crianças (o que quer justamente dizer que ela é também a mãe para ele, mesmo que isso não seja para ela de uma importância particular). Eis aquilo que ele quer tentar, tentar vários dias... talvez mesmo durante toda sua vida. Está aí seu pedido, e ele o deixa claro em resposta à questão: Tentar o quê? Vós dizeis: Amar. Uma tal resposta pode parecer ingênua, tocante também, na medida de sua ignorância, como se o amor pudesse nascer de um querer-amar (ela responderá, a gente se lembra disso: Jamais de um querer) e como se o amor, sempre injustificável, não supusesse o encontro único, imprevisível. E, entretanto, em sua ingenuidade, ele talvez vá mais longe do que aqueles que creem saber. Nessa mulher fortuita, com quem ele quer tentar, tentar, é com todas as mulheres, com sua magnificência, seu mistério, sua realeza, ou mais simplesmente, com o desconhecido que elas representam, com sua «realidade derradeira», que ele só pode se confrontar; não há uma mulher qualquer, não é pela decisão arbitrária da escritora que esta mulher adquire pouco a pouco a verdade de seu corpo mítico: isso lhe é dado e é o dom que ela faz sem que possa ser recebido, nem por ele nem por pessoa alguma, talvez somente, e parcialmente, pelo leitor. A comunidade entre esses dois seres, que não se coloca jamais num nível psicológico, nem sociológico, a mais assustadora que seja e, entretanto, a mais evidente, ultrapassa o mítico e o metafísico.



Há muitas relações entre eles: da parte dele, um certo desejo – desejo sem desejo, já que ele pode se unir a ela, e que é, antes, ou que é, sobretudo, um desejo- saber, uma tentativa de nela se aproximar daquilo que se subtrai a toda abordagem, de vê-la tal como ela é, e, no entanto, ele não a vê; ele sente que não a jamais (nesse sentido, é sua anti-Beatriz, Beatriz estando toda na visão que sentem dela, visão que supõe a escala de todas as visões, da visão física fulminante à visibilidade absoluta onde ela não se distingue mais do Absoluto mesmo: Deus, o teos, teoria, o último daquilo que é para ver) – e, ao mesmo tempo, ela não lhe inspira nenhuma repugnância, somente uma relação de aparente insensibilidade que não é da indiferença, se ele chama lágrimas e ainda mais lágrimas. E talvez a insensibilidade abra o homem que crê se deter nela a um prazer que não se saberia nomear Talvez vós tomeis dela um prazer desconhecido de vós, não sei (portanto, a instância suprema não pode se pronunciar: o prazer é essencialmente aquilo que escapa); do mesmo modo, ela lhe descobre a solidão, ele não sabe se esse corpo novo que ele alcança sem poder alcançá-lo o torna menos sozinho ou ao contrário o faz se tornar sozinho: anteriormente, ele não sabia que suas relações com os outros, seus semelhantes, eram talvez também relações de solidão, deixando de lado, por pudor, conveniência, submissão aos costumes, esse excesso que vem com o feminino. Seguramente, à medida que o tempo passa, discernindo que com ela precisamente o tempo não passa mais, e que assim ele é privado de suas pequenas propriedades, «seu quarto pessoal» que, sendo habitado por ela, é como que vazio – e é esse vazio que ela estabelece que faz com que ela seja de mais –, vem ao pensamento dele que ela deveria desaparecer e que tudo seria aliviado se ela se reencontrasse com o mar (de onde ele crê que ela vem), pensamento que não ultrapassa a veleidade de pensar. Entretanto, quando ela verdadeiramente tiver se retirado, ele provará uma espécie de arrependimento e um desejo de revê-la, na nova solidão que a súbita ausência dela cria. Só que ele comete o erro de falar disso para os outros e mesmo de rir disso, como se essa tentativa que ele empreendeu com uma extrema seriedade, prestes a consagrar a ela toda sua vida, deixasse em sua memória apenas a derrisão do ilusório. O que é justamente um dos traços da comunidade, quando essa comunidade se dissolve, dando a impressão de jamais ter podido ser, mesmo tendo sido.




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Fragmento extraído de: 
A Comunidade Inconfessável -  Lumme Editor (2013)










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